Em recente matéria, o The New York Times abordou e relatou as reinvenções realizadas por Lady Gaga durante seus 10 anos de carreira, até os dias de hoje. Esbarrando em vários spoilers sobre o filme "Nasce Uma Estrela", o conteúdo traz também uma lembrança de coisas que a cantora já proporcionou a quem acompanha seu trabalho e ao mundo pop no geral. Desde os conceitos por trás dos álbuns, as roupas chamativas usadas em aparições, até a sua atuação emocional verdadeira no filme, que estreia dia 11 de outubro no Brasil.

Leia a matéria completa traduzida (contém spoilers):

Marilyn Minter para o The New York Times

A Camaleoa (Shape-shifter)

Lady Gaga quer usar todos os figurinos, dar vida a todo tipo de estrelato que exista. "Nasce Uma Estrela" é apenas a mais nova reinvenção dela.

Fotografia: Marilyn Minter

Lady Gaga não só chegou ao Festival de Filmes de Veneza, ela flutuou em sua entrada, uma Afrodite prateada carregada pelas ondas, estiletos negros roçando a espuma do mar. Dessa forma, devo dizer que ela pegou um táxi aquático.

Uma imagem dela se aproximando pelo canal - sentada precariamente ao lado da lancha envernizada em um vestidinho preto, as pernas elegantemente entrelaçadas, o cabelo com três rolinhos como uma coroa de croissants, segurando uma única rosa vermelha em uma das mãos e mandando beijos com a outra - imediatamente se tornou um meme. Claro que ela não poderia entrar andando na première de "Nasce Uma Estrela", o primeiro longa-metragem no qual ela tem um papel principal, interpretando a protagonista, uma supernova. Andar é para pessoas comuns. Navegar, no entanto, é atemporal. É para sereias, tanto em crenças mitológicas quanto interpretativas. Também é algo alegremente teatral, sem necessidade de desculpas: alto acampamento em alto mar, um divertido pastiche de todas as celebridades que já usaram barcos antes. Em poucas horas, vários investigadores da internet começaram a postar fotos de Gaga no barco junto com fotos de estrelas clássicas de Hollywood, incluindo Marilyn Monroe em um maiô preto de peça única. No dia seguinte, Gaga e Bradley Cooper, seu diretor e coprotagonista, chegaram de mãos dadas à exibição do filme; ela usava um vestido branco sacolejante, do tipo que se usa para andar sobre aquelas grades de metrô no chão.

Nós nunca imaginaríamos isso acontecendo. Lady Gaga é nossa premiada do pop das grandes entradas, nossa santa padroeira das chegadas operísticas. Ela nunca, em uma década de fama mundial, esteve satisfeita com entradas simples; ela tem que aterrissar nos lugares, trepidando em um cabo como se fosse uma aranha incrustada de diamantes. Ou mancando, com muletas falsas, um Tiny Tim da alta moda. Antes de performar no Grammy em 2011, ela alegou ter dormido em um ovo translúcido enorme por 72 horas para que quando ela finalmente saísse dele, pudesse sentir que vivenciou uma total "incubação embrionária criativa". Na primeira década de sua carreira, ela frequentemente se apresentava seminua sempre que descia de escadas. Em seus anos mais jovens, ela adentrou no MTV Video Music Awards em um agora infame vestido e botas de neve feitas de carne crua, não apenas uma ironia visual, mas uma experiência olfativa completa, matadouro de fabulosidade. Gaga já se descreveu como "um show sem intervalos", mas pode ser mais preciso enxergar a sua carreira como uma série gloriosa de aberturas; sua cortina está sempre subindo. É por isso que sua entrada aquática em Veneza provocou prazer coletivo na forma de vigorosos retweets. Ela pode agora ser uma atriz séria, mas não se esqueceu de como jogar o seu jogo.

Quando eu conheci Lady Gaga em uma tarde nebulosa, alguns dias depois de sua turnê em Veneza, em sua casa tão alta em Hollywood Hills que ultrapassei a linha de nevoeiro antes de chegar lá, ela ainda estava completamente no modo Marilyn. Seu cabelo loiro patinho foi moldado como uma áurea ao redor de seu rosto. Seus lábios eram vermelhos mate, com batom levemente além do contorno da boca, um dia dos namorados entusiasmado. Usava os mesmos stilettos de couro envernizado que usou no barco e um vestido de tecido maleável marrom com estampa de tigre, uma silhueta de meados do século, favorecida por granadas de celulóide que selam a vácuo tudo no seu lugar. Seus brincos, candelabros de obsidiana, pendem pesados como enfeites de capuz, lançam reflexos prismáticos em sua clavícula e parecem ameaçar a integridade geral de sua postura régia.

Tendo visto "Nasce Uma Estrela" no dia anterior, em que Gaga faz uma performance crua e despojada, eu fiquei um pouco abalada enquanto a observei passar pela casa (que por acaso era também a casa do roqueiro avant-garde Frank Zappa que ela comprou de seu fundo fiduciário familiar em 2016) com o rosto maquiado e de salto alto. No filme, a personagem Ally, começa sem maquiagem, uma garçonete frustrada com cabelos castanhos cor de lama (tom natural de Gaga) que há muito tempo abandonou seus sonhos de compositora e se estabeleceu fazendo covers ao vivo em um bar de drags uma noite por semana, única mulher na conta. Certa noite, Bradley Cooper, interpretando um cambaleante rock star alcoólatra chamado Jackson Maine, tropeça no bar em busca de uma bebida e acaba descobrindo uma musa - ele fica enfeitiçado pela performance de "La Vie En Rose" em um figurino Edith Piaf completo, com direito a sobrancelha finíssima modulada com fita isolante.

Mais tarde naquela noite, Jackson pergunta à Ally porque ela não segue carreira musical. Ela conta que tentou, realmente tentou. Mas não conseguiu encontrar nenhum tipo de indústria que pudesse aceitar o rosto dela. Eles amavam a forma que ela soava, mas odiavam a forma que ela mostrava. Ouvindo isso, Jackson encosta no rosto dela com um único dedo e traça o contorno de seu nariz. Enquanto isso por si só parece um gesto meio erótico, é a reação de Ally que faz a cena: ela apenas respira enquanto ele gentilmente contorna o órgão que mais faz ela se sentir mal. É uma passagem fantástica, em que ela parece muito receptiva e completamente segura.

Agora que passeamos por sua casa, Gaga estava tão opaca quanto Ally é transparente. Ela falava com cuidado, em um tom de respiração, como se ela estivesse em uma encenação com uma antiga estrela de cinema a qual o assessor de imprensa aconselhou permanecer enigmática e reservada.

Ela me mostrou um banheiro bizarro, onde tem uma cama embaixo de um chuveiro; ela gesticulou delicadamente para o quintal, anunciando: "Aqui temos alguns lindos limoeiros. É um lugar maravilhoso para chegar e criar". Quando entramos no estúdio, ela andou na pontinha dos pés pelo cômodo meio cavernoso, em direção a um grande piano falando com a voz tão baixa que eu mal podia ouvi-la. Fomos andando até uma pequena alcova com paredes caiadas de branco e teto de 20 pés, que parecia o estoque de um museu de arte – uma câmara de eco, ela explicou. Perguntei sobre a acústica, em parte porque pareceu uma forma educada de falar, mas em parte porque eu estava tentando abrir uma brecha sobre qualquer assunto para conversarmos. Se ela estava se sentindo legitimamente tímida ou estava simplesmente atuando como uma ingênua contida, eu ainda tinha que vê-la falar no volume máximo.

Do nada ela começou a cantar. A capela, espontaneamente, voz forte, seus braços se lançaram para o alto como se fossem asas, a cabeça jogada para trás para abrir sua garganta. Ela estava cantando o refrão de "Shallow", a canção que ela co-escreveu para "Nasce Uma Estrela", que se tornou a música tema para o filme. É tocada no catártico ápice do trailer (que já foi visto quase 10 milhões de vezes no YouTube) - o momento que Ally relutantemente entra no palco pela primeira vez para cantar com Jackson. A Gaga atua nesse momento com um constrangimento incrível; é difícil imaginar ela sem querer fazer um furacão no palco, mas ela convence. Ally ficou restrita por tanto tempo que hesita, não acredita totalmente que essa é a sua chance. Mas aí algo surge. Ela endireita seus ombros, se posiciona corretamente no microfone e arremessa sua voz na direção da multidão.

Na câmara de eco, as palavras da música ricocheteiam, estremecendo o cômodo: "I’m off the deep end! Watch as I dive in! I'll never meet the ground!". Quando Gaga canta, seu corpo inteiro vibra. Ela cerra os punhos e fecha os olhos com força.

Depois que ela terminou de se vestir, Gaga parecia beatífica, vertiginosa, respondeu à minha pergunta banal com certeza inegável. A acústica aqui, concordamos, era muito boa.

O título de "Nasce Uma Estrela" é ilusório e sempre foi. Implica uma geração espontânea, Athena saindo completamente formada da testa de Zeus. Na verdade, é uma história sobre trabalho duro, sobre a maquinaria cansativa por trás de uma celebridade. Em cada versão do filme, a fama pode destruir (facilitando dependência ou piorando comportamentos autodestrutivos), mas pode também ser um rito sagrado; unge o verdadeiramente digno com louros e óleos aromáticos, não importa o quão aquilino seja o nariz. A narrativa pega uma ninguém e a une com uma lenda em decadência. Ele se apaixona por ela e seu potencial artístico, e a direciona direto para a prova de popularidade do público. É uma história de amor inabalavelmente perene como "Romeu e Julieta", talvez um pouco menos esmagadora, porque só o homem está condenado e a protagonista começa a se afastar de sua tragédia triunfante, seu sofrimento nobre, seu nome em luzes de neon.

"Nasce uma Estrela" nunca foi um filme sobre uma atriz desconhecida passando pelas telas como se fosse um cometa raro. Ao invés disso, desde o início, sempre foi um filme sobre uma mulher superfamosa fazendo um filme. Essa é a razão da franquia sempre funcionar: Vem com uma apólice de seguro. Em 1937 quando Janet Gaynor fez o papel da garota de fazenda Esther Blodget na primeira versão (que foi um remix de um drama de 1932 chamado "What Price Hollywood?"), ela estava fazendo um retorno às telas, mas tinha sido campeã de bilheteria da era silenciosa, a primeira mulher a ganhar um Oscar por atuar. Judy Garland, que fez Esther em 1954 (um executivo de estúdio trocou rapidamente seu nome para Vicki Lester no filme), era um nome conhecido aos 17 anos, não mais uma veterana de Vaudeville, mas uma garota de estúdio moldada, que continuava sendo uma constante infusão de anfetaminas, barbitúricos e elogios.

Em 1976, Barbra Streisand, que teve sua personagem batizada como Esther Hoffman (temos que acreditar que ela foi de patinho feio a cisne), já era uma ganhadora de Oscar por interpretar Fanny Brice, e tinha acabado de receber outra indicação por "The Way We Were". Essas atrizes tinham pelo menos uma década de carreira, e usaram o material menos como uma festa de despedida e bem mais como uma volta da vitória. Claro que as Esthers seriam bem-sucedidas; suas contrapartes da vida real já haviam superado todos os obstáculos.

É por isso que o papel principal é tão atraente para as divas que querem explorar os limites de sua fama e o que elas tiveram que suportar para torná-la realidade. Essas atrizes, fantasiadas como versões mais jovens de si mesmas, lutam contra suas falhas e colocam para fora seus maiores medos. Mas não ficamos receosos por elas, não mesmo, porque sabemos como a história termina. Garland, que sempre se sentiu intimidada pelo exército de loiras da MGM e passou a vida fazendo piadas auto-depreciativas, acabou se moldando como a morena mais amada do mundo. Streisand, cuja a fala "Olá, linda" estava encharcada de oblíqua ironia, transformou uma ponte proeminente em um local de desejo. A tenacidade inata da cidade de Nova York em Gaga traz um sabor ao papel diferente de suas predecessoras. Janet Gaynor interpreta a estrela como pura e bem alimentada, Garland interpreta como uma brava trovadora em laços de fita e Streisand interpreta como uma prima-dona em ponchos coloridos (ei, eram os anos 70), a Ally de Gaga é mais experiente e mais pé no chão. Ela é o tipo de mulher que entra em brigas, que alternadamente briga e discute com o pai, (Andrew Dice Clay), uma condutora que um dia foi aspirante no show business, mas nunca teve uma virada de sorte.

Quando Cooper ofereceu à Gaga o papel, ele disse à ela: "é assim que seria sua vida se você tivesse chegado aos 31 sem ter atingido a fama", e ela realmente personifica a ânsia feroz de uma pessoa que pretende ser famosa.

Ela não é nenhuma inocente quando entra no palco para cantar. Ela sabe exatamente o que fazer, e exatamente o que isso vai significar para sua carreira. Ela está pronta para começar.

A jornada de Ally não é sobre uma cantora desenvolvendo seu talento – ela já passou dessa fase. Trata-se de encontrar o caminho para uma estética, uma vez que ela já tenha a atenção do mundo. Ela pinta o cabelo de laranja, começa a trabalhar com um coreógrafo e canta músicas pop chiclete sobre bundas, fazendo tudo sem nem vacilar, mesmo quando o Jackson bêbado a critica por estar sendo inautêntica. Alguns espectadores podem interpretar uma hierarquia do tipo rock versus pop nas transformações de Ally - que fica mais "real" quando ela harmoniza com as melodias de Jackson ou sentada em seu piano - mas o domínio de Gaga sobre os dois gêneros musicais no filme é uma refutação preventiva do que é essencialmente um preconceito de gênero. O que "Nasce Uma Estrela" deixa claro sobre Lady Gaga é que ela possui a destreza de fazer qualquer tipo de música que ela desejar.

Cooper me disse que escalou Gaga depois de assistir uma apresentação dela de "La Vie En Rose" em um evento beneficente para o câncer. No dia seguinte, ele dirigiu até a casa dela em Malibu para testar a química entre eles. Eles se conectaram de imediato quando conversaram sobre suas famílias (ambas da Costa Leste, ambas italianas) e comeram um espaguete na varanda dela.

"Ela estava completamente iluminada pelo sol", ele contou. "Tão carismática. Eu pensei comigo mesmo, Oh, Deus. Se ela for exatamente assim no filme, se na pior das hipóteses ela apresentar isso no filme, o filme vai funcionar".

É complicado de apontar exatamente quando Lady Gaga, a super estrela internacional, nasceu. Passado um certo nível de fama, as histórias das origens dos artistas pop começam a pender para o mitológico.

"Eu tenho nervos dentro de mim que me estimulam", Gaga disse, sentada em uma cadeira giratória em seu estúdio no porão, quando perguntei o que a impulsiona.

Ela manteve suas pernas cruzadas nos tornozelos e a coluna em linha reta, com as unhas cor-de-rosa entrelaçadas no colo, como se estivesse treinando para se encontrar com a rainha Elizabeth (nota: Quando Gaga conheceu a Rainha no Royal Variety Show em 2009, ela fez uma reverência enquanto usava um vestido até o chão equipado com ombreiras bufantes e totalmente feito em um lustroso látex vermelho).

"E eu não faço ideia de onde vem, exceto que pode vir de Deus, ninguém sabe".

O que ela sabe é que em um determinado ponto, ela se sentiu livre: para largar seu nome de nascimento (Stefani Joanne Angelina Germanotta), para se tornar um acontecimento, sempre sendo capaz de se livrar das peles velhas.

O início da carreira de Lady Gaga foi um estudo dessa liberdade convidativa: Olha como eu sou livre, olha o quão livre você pode ser. Era isso que ela vendia, aos 21 anos, com seus laços enormes feitos de cabelo platinado, seus óculos escuros imensos e suas ombreiras altíssimas. Essa foi a realização que a conduziu, depois de crescer no Upper West Side, frequentar uma escola católica só para garotas e estudar minuetos no piano, se mudar para o centro em 2004, primeiro para estudar artes teatrais na NYU (ela largou durante o segundo ano do curso), e depois para cantar em bares meio sujos no Lower East Side enquanto enviava suas demos para gravadoras. Ela leu livros de Andy Warhol e percebeu que o que a maioria das pessoas querem, quando sonham com fama, não é necessariamente riqueza ou poder, mas ilimitabilidade: a habilidade de mudar. Muitos artistas começam cheios de coragem e destemidos, mas se calcificam em uma persona mais endurecida com o passar do tempo; quando Lady Gaga adotou seu novo nome (algum momento em 2006, mais provável ter sido por causa daquela música do Queen), ela decidiu mudar a fórmula. E se ela começasse com uma personagem e a personagem fosse a personificação física de fluxo? E se ela nunca usasse a mesma roupa duas vezes, ou desse uma entrevista fantasiada ou alegasse ser um modelo de pura autenticidade criativa?

O álbum de estreia da Gaga, "The Fame" (rapidamente reformulado com músicas extras vindo como "The Fame Monster") saiu em agosto de 2008, uma época de otimismo, de revisões políticas, quando os jovens estavam prontos para aceitar ganchos de pop meio jangle sobre uma utopia que lhes diziam que poderiam se redefinir continuamente.

Suas primeiras gravações podem não ter sido muito profundas - "Poker Face", ainda seu segundo maior single até hoje após "Just Dance", é um ode às superfícies espelhadas, para permanecer intencionalmente inescrutável – mas as músicas eram pegajosas (ela mudou o jeito de uma geração inteira ouvir a frase "ooh la la"), e sua leveza ágil era intencional. Grande parte de suas músicas era uma batida linear: grandes sintetizadores, grandes ganchos, pancadas tilintando como um punhado de pulseiras prateadas. A música era uma ferramenta para propagação da sua imagem radiante, que era sempre uma surpresa de se observar.

Fotografia: Marilyn Minter

Quando Gaga emergiu na cena pop, ela era um fenômeno - uma amálgama doida dos clubes de Nova Iorque, experimentações da escola da arte, treinamentos da gravadora, treinamento vocal clássico e autênticos sucessos nas rádios. Ela claramente pegou dicas das encarnações anteriores de grandes estrelas do pop (o glamour anfíbio de David Bowie, a ambição loira de Madonna, o amor duplo pelo brilho e precisão de Michael Jackson), mas ela estava ainda mais focada que seus predecessores no evento ao vivo, na reviravolta. Ela começou puxando os limites e parou de usar calças; ela se tornou um painel publicitário ambulante para a moda vanguardista (os saltos de cascos inclinados de Alexander McQueen, uma jaqueta coberta de Caco o Sapo, vários vestidos feitos de cabelo humano, aquele vestido de carne), um fato que serviu, na época, para tornar qualquer outro artista que não estava no palco em uma piscina de sangue um tanto quanto chato.

A obsessão inicial de Gaga com o disfarce previu as vidas duplas que todos nós vivemos agora, nossa existência simultânea entre pessoas vivas que respiram e como avatares disfarçados. Mas ao invés de ver essas identidades como segmentadas - a pessoa real, a fachada - ela colocou adiante o conceito de que é possível, e adaptável, tentar se libertar de velhos limites em um mundo quebrado. Você pode ser um insider e um outsider ao mesmo tempo, um humano e um alien. Tudo que é sólido se derrete em Gaga. Parece um paradoxo, e é; mas o paradoxo é onde Gaga brilha. Verdades pós modernas duplas representam o ambiente dela.

Ela começou se chamando de monstro, não apenas para acolher um tipo de revolta bizarra que já tinha sido o distrito principal de ícones do pop como Bowie ou Prince, mas também porque ela era monstruosa, uma criação do pop que devorou o espírito da época e então alegremente o vomitou. Ela zombou de si mesma enforcada em um palco, ela sonhou com um chapéu cheio de baratas vivas, engoliu um rosário no vídeo "Alejandro", contratou uma "artista de vômito" para vomitar leite verde-limão em sua roupa, ela fez um discurso de premiação como seu alter-ego masculino, Jo Calderone. Seu projeto todo era um balé dos sonhos colorido, uma alucinação transparente. E vendeu discos (mais de 27 milhões em todo o mundo) e ganhou prêmios (seis Grammys).

"Eu continuo me transformando em uma nova concha de mim mesma", ela me disse. "Então sim, há um componente de atuação no que eu faço, ou um componente do showbiz no que eu faço. Mas a palavra 'atuar', é difícil para eu falar dessa maneira, porque 'atuar' para mim quase indica que eu estou fingindo". Ela insistiu para mim que todas as suas iterações formam uma linha contínua, que a performance é a realidade.

Gaga tem, na última década, discutivelmente movido o aparato pop em direção a uma bizarrice poderosa. Sua influência está em todo lugar - ela abriu as portas para mais hitmakers femininas serem descaradamente bizarras (Miley Cyrus balançando em uma bola de demolição, Katy Perry com seu sutiã em forma de sniper recheado com chantilly, Sia vivendo embaixo de sua peruca, até mesmo o indie de St. Vincent e a influência de Fritz Lang) - mas como resultado, o maximalismo precoce de Gaga começou a se sentir menos vital para a conversação cultural. Em 2011, o "21" de Adele cimentou uma nova austeridade no pop; tudo que ela teve que fazer para vender 11 milhões de álbuns foi ficar em um único lugar e cantar melancolicamente sobre coração partido.

Então Gaga desviou de novo, e de novo, e de novo. Ela fez um álbum de jazz com Tony Bennett. Ela fez um álbum chiclete e altamente metalizado chamado "ARTPOP" que falhou em se conectar com o público, pelo menos na escala Gagagian que ela estava acostumada (vendeu pouco mais que um milhão de cópias nos EUA). Quando ela fez 30 anos, ela lançou um quinto álbum mais minimalista chamado "Joanne", em homenagem a uma tia que morreu jovem por causa de complicações do lúpus. Ela promoveu o álbum em camisetas brancas e um chapéu rosa simples. Ela fez turnê em bares antes de fazer em arenas. Ela também lançou o seu documentário da Netflix "Gaga: Five Foot Two", um vislumbre do seu dia a dia enquanto ela se preparava para o Super Bowl 2017, produzia e promovia "Joanne" e falou abertamente sobre a dor debilitante causada pela fibromialgia (algo com o qual ela lidou secretamente por anos). O documentário mostra Gaga com uma falta de vaidade surpreendente. Ela aparece na câmera com cabelo sujo e rosto limpo. Essa é Gaga - A Vulnerável, Gaga - A Alma Sensível.

O documentário termina com a performance dela no Super Bowl, onde ela cantou todos os hits de karaokê do catálogo dela - "Bad Romance", "Telephone", até mesmo "Just Dance" - com entusiasmo em um traje de lantejoulas, passando pela barulhenta batida disco de "Born This Way" em botas de salto, cercada por um exército de dançarinos em capas fluorescentes. Era um set alucinante, uma Ginástica de Cárdio de Maiores Hits e uma exibição verdadeiramente impressionante da sua dominância cultural. Mas também pareceu um lamento, como se pertencesse a uma era diferente, quando Gaga estava dando discursos sobre derrubar a "Don’t Ask, Don’t Tell" e quando a música se tornou um hino de luta pelo casamento gay em uma escala nacional. Em anos recentes, a cultura queer se tornou mais anti-institucional, é menos sobre normalizar e mais sobre resistir às normas. Por um lado, a fama galáctica de Gaga, a qual ofereceu-lhe uma enorme plataforma como defensora da igualdade, se tornou uma obrigação quando a conversa se torna mais íntima e delicada. O pop não é inteiramente pós-espetáculo (a performance recente de Beyoncé no Coachella foi bem extravagante), mas está evoluindo para um espaço menos bombástico. Está ficando mais cru, menor. E Gaga está fazendo o mesmo.

Ela não desistiu do poder de um show audacioso ao vivo (esse inverno, ela irá fazer uma residência pirotécnica em Las Vegas chamada "Enigma"), mas ao fazer "Nasce Uma Estrela", ela está entrando em uma conversa mais suave com o público - sobre talento, sobre ambição, sobre sua própria trajetória. Ally é a criação mais humana de Gaga, e oferecê-la para nós - seu medo, sua lealdade, seu coração partido depois de uma tragédia - é um tipo bem diferente de barganha do que chegar na frente de milhões vestida como um fantoche holográfico. Ela está, em essência, fazendo uma autoficção exploratória em grande escala, mesmo ao interpretar outro personagem.

Lady Gaga comprou a excêntrica propriedade de Frank Zappa para morar em Los Angeles - ela já tem uma casa de estilo mediterrâneo em um rochedo isolado e escarpado em Malibu para isso - mas como um refúgio de trabalho, o novo centro de suas incontáveis perseguições criativas. Ela quer pintar aqui, escrever música aqui (ela me disse que atualmente ela está escrevendo músicas fervorosamente em um piano branco no segundo andar; literalmente na superfície do piano, com uma caneta preta) e planeja seu espetáculo em Vegas daqui com seu time de produção, como um conselho de guerra bolando um ataque brilhante. Em um estúdio de gravação, depois da serenata de "Shallow", Gaga tocou cinco músicas para mim da trilha sonora do filme que está para ser lançado. Enquanto a música explodia, ela começou a se soltar - esse era seu território, sua maior contribuição para o filme. Ela mexia os lábios cantando baixinho suas próprias músicas da sua cadeira giratória, olhando diretamente nos meus olhos e me levando insistentemente para seu estado de alegria.

O estúdio é seu santuário, é uma das razões principais dela ter comprado a propriedade. Ela também está trabalhando para preservar o máximo possível das esquisitices da casa: as portas submarinas antigas com portinholas grossas, um mural de dragão gigante, o chão da biblioteca pintado para parecer uma lagoa de lírios. Ela me disse que ama o "caos intrincado" da casa.

Gaga é uma freguesa de leilões - ela gosta de adquirir objetos icônicos, criados por personalidades icônicas - e à medida que eu fazia um tour pela casa de Zappa eu percebi que nós estávamos do lado de um item de colecionador gigante, um galho de 8 mil metros quadrados no ninho dos artefatos culturais pop que ela constrói há uma década. Em 2012, ela comprou 55 itens do arquivo privado de Michael Jackson, incluindo sua jaqueta de couro "Bad" e uma luva de cristal. Naquele mesmo ano, ela comprou um vestido Alexander McQueen de seda bege da coleção de moda britânica Daphne Guinness. Em 2016, em sua turnê "Dive Bar Tour" promovendo "Joanne", Gaga chegou em um show no Cadillac Fleetwood rosa de 1955 de Elvis (ela pegou emprestado).

Talvez esse impulso de colecionar foi o que ela absorveu de seu estudo sobre Warhol. Gaga é uma artista de acumulação, de remixagem e reimaginação, ela coloca seus heróis na sua órbita gravitacional. Uma vez ela contou para uma entrevistadora que "toda a sua carreira é um tributo à David Bowie", mas sua carreira é na verdade um tributo a todas as diferentes formas pelas quais uma pessoa pode ser monstruosamente famosa: Ela quer usar cada roupa, viver cada tipo de estrelato ao seu maximalismo mais extremo.

Se ela se tornasse uma estrela do cinema, ela não poderia apenas tropeçar em um papel, ou um filme, que ninguém nunca ouviu falar - ela queria entrar em uma linhagem. Quando ela era mais jovem, ela me disse que costumava assistir "O Mágico de Oz" repetidas vezes, convencida de que Judy Garland era a melhor artista viva.

"Judy, eu acho que ela é extraordinária", ela me disse. "Há uma vulnerabilidade por trás de seus olhos, a forma que ela fala, ela tem grandes traços. Eu sempre quis ser como ela. É simples assim". E agora ela está exatamente no mesmo palco.

Mais cedo, ela me mostrou um cômodo que estava vazio, a não ser pela foto gigante de seu próprio rosto, de pelo menos 4,5 m, em uma moldura dourada.

"Foi um presente do Bradley", ela disse. "Foi a última cena do filme. Você sabe qual é?"

Eu sabia. É o momento que Ally está no palco do Shrine Auditorium - onde Garland gravou sua última cena - em um vestido de noite azul-gelo, cantando em homenagem ao seu marido falecido. Ela começa em uma expressão tímida e esgotada, explicando para o público que ela irá cantar a última música que Jackson escreveu para ela, e que talvez, com o apoio deles, ela iria conseguir. Mas quando a balada começa, sua voz incha e se torna uma avalanche. É uma performance de bravura em close-up extremo, uma espécie de convocação sinfônica a cada mulher que desempenhou o papel. Gaga canaliza tanto o jeito que Garland cantava (ferida, tonalmente brilhante, mal se segurando) quanto o jeito que Streisand fazia (com força, varrendo, com a projeção da mandíbula). Mas Gaga acrescenta algo próprio: uma sensual e terrena confiança, como gasolina em suas veias.

Quando ela termina, uma única lágrima escorre pelo seu rosto. Magicamente, o momento de alguma forma evita o efeito de parecer forçado - a lágrima parece verdadeiramente merecida. Depois de assistí-la performar essa cena, eu fiquei feliz pelo que Gaga conseguiu fazer, não apenas pelo seu personagem, mas por ela mesma. Você desesperadamente quer saber o que está por vir no futuro dela depois que a cortina se fecha.

Eu perguntei a Gaga mais tarde o que nós poderíamos esperar da sua próxima fase. Claro, tem Vegas e um novo álbum a caminho, e ela está lendo pilhas e pilhas de roteiros. Mas ela não quis discutir isso. Ao invés, ela apenas sorriu enigmaticamente.

"Oh", ela falou. "Estou apenas mudando de forma novamente".

Rachel Syme

Acompanhe todas as novidades sobre a Lady Gaga em nossas redes sociais: Facebook, Twitter e Instagram.

Fonte

Tradução por Deborah Sant'Anna e Vanessa Braz de Queiroz

Revisão por Kathy Vanessa

Imagem: Reprodução / The New York Times / Marilyn Minter