Este é um texto de Little para Little. De pessoas que vão se reconhecer nos detalhes mínimos, ainda que morem a quilômetros de distância e não compartilhem a mesma comida preferida. É muito possível que você, assim como eu, se encaixe em uma sigla tão diversa quanto extensa, que tenta em si mesma abarcar tudo o que não é apenas uma coisa. A normatividade tem um nome, e todos os outros nomes precisam se agrupar em um só núcleo. Pra se fortalecer? Pra se espelhar? Pra discutir e pertencer?

Às vezes as letras chegam a se apertar tamanha a vontade de se encaixar. Um aperto na cabeça, como naquelas noites em que mal se dorme porque a ansiedade lembra que não pode ser quem se é. Ou como aquele aperto entre o coração e o pulmão, bem no meio do tórax, quanto tenta imaginar a reação dos amigos, dos pais, e de quem mais vive por perto, quando descobrirem o tal Grande Segredo. Aperto de quem tropeça nas próprias confusões e quer ser mártir pra sofrer a sina divina, como fazem acreditar. O aperto que quer sexo, um instinto tão humano quanto não querê-lo, e que de tão figurativo se torna literal.

Quem anda à margem, pulando de sombra em sombra, só dança se dançar consigo mesmo à espreita na madrugada do quarto. Não diz a cor favorita, porque meninos têm que usar azul e meninas, rosa. Não fala sobre o filme preferido, porque não é o tipo de cinema que deveria apreciar. Também não consegue conversar sobre aquele programa que acha divertido, senão vai ficar claro, muito claro, que não é quem deveria ser. E assim vai se distanciando de tudo, inclusive daquela artista sobre quem todos estão falando.

Quem é ela, que teima em não sair dos jornais que os pais assistem e, nos blocos de carnaval, faz os homens usarem peruca loira e maiô azul celeste? Logo ela aparece em cada vez mais cores, abraça a fama e canta algo que você não quer ouvir porque talvez lhe agrade — o seu maior medo. Agrupa um séquito que, à sua frente, sente conforto e acolhimento em vestir-se como bem entender, e que vira piada por fugir à norma. Traz simbologias das quais você só quer distância.

Até que um dia a velha porta trancada mais uma noite se faz vigia e você olha pros lados. Ufa, não há mais ninguém por aqui! É a primeira vez, então, que você de fato permite ouvir a voz que até o momento havia evitado. Os ouvidos vão se arregalando junto à boca e, assim que a música termina e seu corpo cheio de endorfina se joga na cama, as luzes do computador, isoladas no breu, projetam o ultimato:

Você não pode gostar de Lady Gaga.

Pior: você não pode gostar de Lady Gaga e, muito menos, dizer gostar de Lady Gaga. Caso descumpra o acordo, as punições serão severamente aplicadas. A começar por espalhar a fofoca de que, pelo seu jeitinho, você gosta de Lady Gaga. Sim, a punição é o próprio descumprimento do acordo, afinal a vida é um paradoxo, e todo mundo vai descobrir, de um jeitinho ou de outro, seu Grande Segredo.

Mas as tantas confusões, paralelas e aparentemente distintas, se juntam e com força constroem um novo ser que passa a ser gestado na sua cabeça, um pequeno e saudável monstro que se espalha corpo abaixo. É um segundo processo de auto-aceitação, que na verdade ocorre simultaneamente ao primeiro. Sem surpresas, a estrutura é a mesmíssima: inicialmente, aceita-se à meia-luz, para depois aceitar-se em cima do palco, com todos os holofotes apontados para si.

Grupo de idosos grita "Você não pode impor seu modo de vida a nós, normais!". Muriel, de cabelos laranjas, maquiagem e brincos, responde: "Ué! Eu não sou normal?". "Não!", retruca o grupo. Muriel se encontra com duas amigas e retira sua máscara de ser humano, revelando-se um ser extraterrestre: "Já nos descobriram, pessoal...". Tirinha da cartunista brasileira Laerte.

Seria tudo culpa de mais um jogo inventado da fama midiática que, atenta às agendas sociais, descobriu que pessoas não-heterossexuais e não-cisgênero também sustentam o sistema financeiro e, de tempos em tempos, inventa um personagem fácil para "agradar" grupos minoritários?

Não deixa de ser. A luta pela garantia de direitos do que hoje é entendida como comunidade LGBTQI+ é historicamente muito recente. Alguns termos bastante conhecidos e falados atualmente, como heterossexualidade, homossexualidade e transexualidade, foram conceituados e ganharam sentido, no geral, nos últimos 150 anos. O termo homossexual, por exemplo, foi empregado pela primeira vez no planeta Terra em 1869, e, no Brasil, em 1894, quando o país já havia se tornado uma república. Não significa que em outros séculos, milênios e civilizações não existiram gays, lésbicas, bissexuais, trans, etc; pelo contrário, há diversos relatos históricos que citam relações afetivo-sexuais que fogem ao padrão homem com mulher e de identidades de gênero que não se encaixam nesse binarismo. Mas não havia um conceito, uma identidade específica que diferenciasse essas relações. O pecado apontado pela Igreja Católica estava ligado à prática da sodomia, ou seja, da relação sexual anal e oral, independentemente de quem a praticasse. Não era punido quem fosse gay, mas sim quem fosse sodomita.

É compreensível então que, com a criação e fortalecimento dessas identidades ao longo do século passado, o capitalismo e as artes tenham se apropriado de alguma forma dessa pauta, e que os frutos desse aglutinamento venham aparecendo apenas nas últimas décadas, através de artistas e músicas que explicitamente tocam no assunto. Basta notar que canções mais antigas como Over The Rainbow (1939), I Will Survive (1978) e Dancin' Days (1978) não foram compostas com intuito de se tornarem hinos de um específico grupo socialmente marginalizado, enquanto que hoje a dinâmica é um pouco diferente.

Mas não me preocupa essa nova construção, e sim por que ela dá certo. Essa é uma armadilha que só vê o lado negativo quem não precisou se esconder e não encontrou na arte-dinheiro de tantos artistas, incluindo a de Gaga, um escape genuíno. Quem nasceu assim e é belo à sua maneira agarrou a armadilha porque parte do mundo ainda chama travesti de traveco, agride bichas e só aprova sexo entre duas mulheres quando este satisfaz o prazer masculino.

Quando a cultura de massa engole Stefani Germanotta, uma mulher branca e cisgênero da alta classe média nova-iorquina, e produz Lady Gaga, com figurinos que propositadamente fogem à norma, com sonoridade dançante e letras que citam amor, sexo, drogas, fama e aceitação, muitas pessoas podem torcer o nariz, mas a gente consegue se reconhecer nas estranhezas e cria um laço ainda mais forte quando identifica que o Jo Calderone que "quis chamar atenção" em um longínquo 2011 é a mesma Lady Gaga que recentemente, depois de quase 10 anos de carreira, insistiu em colocar drag queens no seu filme e, em 2019, inseriu pessoas de diferentes identidades de gênero nos anúncios da sua nova linha de maquiagem.

Hoje, talvez muitas pessoas que admiram o trabalho de Gaga — que passou a cantar jazz, frequentar premiações de cinema e, assim, atingir públicos mais heterogêneos — não lembram como, no início da década, sair do armário como Little Monster pode ter sido tão importante para um jovem homem quanto dizer pela primeira vez ao pai que estava namorando outro rapaz. Mulheres heterossexuais que gostam de comédia romântica não têm problema em comentar que adoraram aquele filme da Julia Roberts, nem homens heterossexuais precisam esconder quando sabem o placar da final do Campeonato Brasileiro. Por isso Gaga tem tanta força no meu — e provavelmente no seu — processo de auto-entendimento e aceitação.

A experiência de enclausurar nossos gostos e comportamentos só é boa a partir do dia em que nos libertamos dela e a transformamos em meras lembranças. Ter confiança para ouvir Bad Romance na frente da mãe é uma catarse privilegiada que nem toda normatividade consegue compreender.

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Agradecimento especial ao meu amigo, e também Little, Leonardo Rodrigues, que fez uma ilustração especial para o texto <3

Revisão por Marcos Vinícius de Souza