Neste dia 18 de setembro, Lady Gaga nos presenteou com um videoclipe para a canção 911, do álbum Chromatica.

Foi uma reação comum entre os Little Monsters a não compreensão de várias referências e simbologias usadas no vídeo, que foi dirigido pelo diretor Tarsem Singh e traz Lady Gaga fazendo alusão a duas situações: realidade e ilusão.

Por isso, convidamos o Lucas Alvarenga, fã conhecido por fazer análises minuciosas dos videoclipes da Mother Monster para lançar a sua visão do mesmo aqui.

I SINOPSE

"O clipe de 911 é uma analogia entre como um acontecimento traumático é subvertido pela nossa mente para dar lugar a uma experiência lúdica e colorida.

Nele, Stefani é uma ciclista protagonista de um acidente envolvendo mais dois carros. A cena é mostrada ao final do clipe e é representada nesse universo lúdico através de uma pintura rudimentar na parede. Pessoas, cartazes, carros e automóveis são distocidos pela imaginação de Stefani e ganham vida num mundo próprio, acontecendo somente na sua própria cabeça.​

No vídeo, Lady Gaga usa vários elementos da cultura armênica, como símbolos e vestimentas, além de elementos estéticos do filme A cor da Româ (The Colour of Pomegranates), que é reverenciado no clipe através de um cartaz informando sua exibição no Festival de Cinema Armênico, acontecendo no mundo real do clipe.​

Esse tipo de reimaginação da realidade através da suas próprias lentes não é novidade para ninguém. No clipe de Marry the Night, Gaga já havia afirmado no prefácio que prefere relembrar seu passado através da arte. Aqui, novamente ela entrega as rédeas à sua visão artística e mostra como sua mente distorce cada elemento, tornando honesta a mentira que conta, afinal, foi ela quem a inventou.​

II PARALELOS

O vídeo inicia-se a partir do acidente, com a bicicleta quebrada e as romãs espalhadas. Gaga acorda vendada e desemparada e é guiada por um cavaleiro preto (a morte).​

A venda na testa e a tornozeleira são representações lúdicas dos ferimentos sofridos por Stefani no mesmo lugar.​

São mostrados os envolvidos no acidente. Um homem é visto batendo sua cabeça consecutivamente numa almofada - uma representação do airbag sendo disparado. Outro homem, com ornamentos opulentes, recebe oxigenação dos bombeiros - é o homem rico na Ferrari -, enquanto uma mulher com ornamentos roxos envolve-se em um corpo enfaixado com pesar, fazendo alusão à vítima fatal do acidente que jaz morta nos colos de uma mulher chorando. ​

(Cena do filme "A Cor da Romã")

Como em todo desastre, existem aqui os fofoqueiros, representados pelos ornamentos azuis e branco, alusão aos jeans que usam. São eles a mulher curiosa que encara Gaga e canta a música pra ela, em julgamento, no começo do clipe; e o casal com o pau-de-selfie registrando toda a tragédia, completamente indiferentes a situação.​

Os policiais são transmutados nas figuras grandes e majestosas em roupas azul escuro. Os bombeiros utilizam roupas laranjas e amarelas e são vistos em diversas cenas, como segurando o estande onde Gaga se coloca no centro: uma alusão às cenas onde carregam a porta do carro refletindo o cenário, incluindo o semáforo ludicamente representado no estande nas cores verde, amarelo e vermelho. Os bombeiros aparecem no mundo lúdico com "911" em romano no chapéu (IX I I).

O caldeirão ao lado da mulher envolvendo o homem morto é uma representação genial de seu carro, ambos saindo fumaça. Os paramédicos são vistos chegando com uma sombrinha girando, uma alusão clara ao helicóptero pousando no local do acidente​.

Gaga então é vista tentando subir aos céus até ser puxada de volta por uma corda atada ao seu pé - uma analogia clara de como os paramédicos tentavam mantê-la viva no mundo real. É possível ver, inclusive, um rápido frame aos 2:17 no qual Stefani dá um rápido espasmo, indicando que ela apresentava sinais vitais e que sua intenção de partir para o outro plano estava comprometido.​

(Cena do filme "8 1/2")

A paramédica que examina os olhos de Stefani com a lanterna é representada pela mulher com as vestimentas que lembram uma Santa e apontam um espelho para Gaga, como se quisesse guiá-la e orientá-la de volta. O Caduceu, símbolo da medicina estampado em seu uniforme, é traduzido na cabeça da Gaga em sua forma mais literal: uma cobra. Após aterrissar de volta na superfície, é possível ver o paramédico envolvendo o tornozelo de Gaga no universo lúdico: uma representação do torniquete sendo atado no mundo real para estancar o sangramento.​

A cena na qual Gaga peregrina atrás do Cavaleiro negro reúne diversos personagens, símbolos e elementos do videoclipe. Se atendo aos paralelos, vemos uma reimaginação do cartaz New Mexico: White Sands, no qual o cavaleiro toma vida carregando consigo a bandeira amarela do Novo México; o hidrante vazando; e um bombeiro na escada arremessando pétalas: uma transmutação poética das faíscas no mundo real.​

O paramédico toma mais duas medidas socorristas: respiração boca-a-boca, na qual podemos ver Gaga evadindo e rejeitando; e por fim, desfibrilação, após ser atada a maca e receber sua sentença final para voltar a vida.

As fitas de CUIDADO que envolvem o cenário do acidente são mostradas no mundo lúdico com os mesmos dizeres, em armênio (զգուշություն).​

(Cena do filme "A Cor da Romã")

A cena final do universo lúdico reúne todos os personagens e elementos presentes nele e, consequentemente, sua contraparte no mundo real. Nele, Gaga recebe, aos prantos, sua sentença para retornar ao mundo real através do desfibrilador.​

III SÍMBOLOS

"As Areias Brancas do Novo México", no imaginário de Gaga, dão espaço a um deserto real de areias brancas.

Desertos são locais que remetem a desorientação, esgotamento e morte, e por ser um lugar de mortificação, representa iniciação e provação.

Gaga é guiada cegamente através dele por um cavaleiro negro (da forma mais literal possível, afinal, ela está vendada). Ela está desamparada e alienada após o acidente, atendo-se a única coisa que lhe pode oferecer amparo naquele momento: a morte.

Em meio ao deserto, Gaga encontra seu próprio Oásis, ao mesmo tempo em que canta o paraíso está em minhas mãos ("paradise is in my hand").

Os Oásis são lugares de escapismos e segurança em ambientes inóspitos como o deserto. É sua fortaleza própria criada dentro de sua mente perturbada pelos efeitos dos antipsicóticos. Em uma sequência de cenas, Gaga é vista, inclusive, fazendo movimentos em alusão ao movimento de engolir comprimidos.​

"É sobre os antipsicóticos que tomo. Eu não consigo controlar as coisas que meu cérebro faz. Meu corpo inteiro ficava entorpecido e eu me dissociava. Após parar de tomá-los, meu médico receitou olanzapina para tomar em caso de emergência"​ - (ELLE Magazine, 2019; Apple Music, 2020).

Parte dessa experiência abstrata da realidade é um reflexo dos antipsicóticos que a cantora tomava durante os últimos anos. Ao afetar seu comportamento e sua conexão com o mundo, a tornavam dissociada e com mudanças constantes de humor.

Em 2019, Gaga revelou que havia cessado o uso de antipsicóticos e começado a utilizar Olanzapina em casos emergenciais – criando a analogia entre o número de chamadas de emergência nos Estados Unidos, 911, e a urgência de receber doses do medicamento caso uma crise surgisse.​

No começo do videoclipe, a atriz dá luz a esses efeitos de forma brilhante. Mantendo-se apática atrás do estandarte, Gaga dá um giro 360 graus enquanto canta "meu humor está indo para lugares maníacos". Ao completar o giro, seu humor de fato muda e ela assume comportamentos maníacos e exagerados bem diferentes dos anteriores. É sua forma exagerada de mostrar como o remédio a afetava.​

(Cena do filme "A Cor da Romã)

Outra referência aos antipsicóticos está na cena em que ela se mantém apática aos acontecimentos lúdicos do acidente ao seu redor, ao mesmo tempo que ostenta plena e graciosamente sua caixinha de medicamentos.

"Mantenho minhas bonecas dentro de minhas caixas de diamantes", ela canta enquanto a segura, em referência aos seus preciosos medicamentos guardados e seguros para quando precisar.​

(Cena do filme "A Cor da Romã")

Uma cena curiosa ocorre no final, quando a médica pergunta se Stefani havia tomado algum medicamento. Em vez de responder simplesmente que não, ela diz que "Não tinham analgésicos".

Sua dor não era física e analgésicos não funcionariam; sua dor era psíquica, e talvez por ter tomado antipsicóticos, sua apatia e alienação tenham causado o acidente (motivo pelo qual a primeira pergunta é se alguém morreu, antes de reclamar de qualquer coisa sobre sua condição).​

Além dos antipsicóticos, outro elemento recorrente no videoclipe é a romã.

Ela aparece no local do acidente, no deserto, na roupa de Gaga e também dá nome ao filme referenciado, A Cor dA Romã (The Color of Pomegranates). Isso porque a romã é um símbolo importante na cultura armênia: suas sementes remetem a fertilidade e abundância (e por isso ela é até arremessada em casamentos, como buquês) e sua cor de sangue aludem a renovação da vida.Em muitas culturas ela é, de fato, uma ligação entre os submundos e os mistérios da morte, representando renascimento.

Perséfone, deusa grega, é levada ao submundo por Hades, onde, após comer uma romã tem sua união atrelada a Ele.​

No quadro de Rubik Kocharian, artista armênio, podemos ver mulheres (em vestimentas armênias, similares a que gaga usa no clipe) oferecendo romãs à deusa armênia da cura e fertilidade, Anahit.​

No clipe, Gaga utiliza a fruta com devoção para simbolizar a renovação e continuidade da vida através da cura do trauma que experienciou.​

A mulher com os ornamentos roxos envolvendo o homem morto faz referência as famosas esculturas Pietá, sendo a mais famosa delas a de Michaelangelo.​

Aqui, vemos Gaga em sua tentativa de subir aos céus. Há milênios, as rosas brancas estão relacionadas com ritos de passagem e ascensão. A auréola envolta de sua cabeça incrementa essa ideia, sendo utilizada para representar seres divinos e transcendentais. ​

Nas cenas em que correm a procissão atrás da morte, um dos bombeiros está jogando pétalas de rosas, anunciando o rito de passagem em sua homenagem.

Podemos também observar um pavão no topo do cenário. Os pavões são animais importantes para a cultura armênica e também está representado no quadro de Rubik Kocharian. Para a cultura ortodoxa da Armênia, a carne do pavão é sagrada e não decai, uma vez que a ave desenvolve novas penas todo ano ao mesmo tempo que suas penas antigas se tornam cada vez mais brilhantes.

Tal qual a romã, é um símbolo de imortalidade, ressureição e renovação da vida.

Aqui, seguir a morte vai além de um ponto final. Em contrapartida, vemos a paramédica nas vestimentas santificadas estendendo a cobra (o caduceu) para Gaga enquanto ela exaustivamente o afasta – outro elemento no qual ela recusa a medicina e tenta se ater a experiência pós-morte.​

A roupa que Gaga aparece toda coberta de preto, com rosas estampadas, sugere um sarcófago: seus movimentos são rígidos e limitados e remetem ao formato do seu corpo, que através do sepultamento metafórico ao qual ela está destinada, irá decompor-se para dar lugar a uma nova Gaga - é hora de enterrar todas as suas dores e traumas através do renascimento.

Até as flores remetem às coroas de flores usadas para homenagear os mortos durante seu enterro. Sua sentença de morte foi declarada: ela vai pra cadeira elétrica (o desfibrilador).​

Os símbolos do Chromatica marcados em sua testa nada mais são do que cicatrizes metafóricas: as feridas psicológicas geradas pelas medicações, traumas e depressão que se fecharam (as feridas na testa causadas pelo acidente) e deixaram marcas permanentes nela.

O que nós estamos ouvindo no álbum Chromatica são suas feridas cicatrizadas".

Por fim, vemos uma ambiguidade nos desejos da cantora.

A Lady Gaga do universo lúdico queria ascender aos céus, enquanto a Stefani, que acorda no mundo real, grita que não quer morrer. Aqui vemos um grito desesperado além das telas dos sentimentos mais humanos e conflitantes existentes dentro da artista.

Quando perguntada em Setembro pela CBS sobre pensamentos suicidas, a cantora respondeu que o sentimento era tão presente que ela deixava pessoas vigiando sua casa. O videoclipe parece mostrar justamente que parte de si ela queria sacrificar.​

No Instagram, ela descreveu o videoclipe como dor em forma de poesia. Nele, ela ressignifica todo o trauma que viveu através de sua arte e nos mostra que nossas feridas emocionais e psíquicas podem ser um caminho para transformações. Ao mostrar seu lado humano mais vulnerável, ela transforma as trevas em luz, e torna sua experiência amarga um pouco mais açucarada.

Lady Gaga e Stefani são uma só, por isso, devemos apreciar e zelar por ambas igualmente.​

E aí, o que acharam da análise do Lucas?

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