Cada geração de artistas é única, ímpar e sempre antecedida por outra, tão grandiosa quanto. Em um momento, uma geração é a influenciada por sua antecessora; em um outro, é ela a base para uma outra e nova geração de astros. Esse ciclo de inspiração na música é normal, frequente e esperado, também ditando o que influenciará os artistas do presente, como acontece com Lady Gaga.

Nessa nova série de especiais, serão discutidas quais são as grandes influências da cantora entre os artistas que tiveram seu auge no passado, expondo seus principais pontos de inspiração, semelhanças artísticas e comparações quanto suas sonoridades e posturas enquanto influenciadores mundiais.

Neste sétimo episódio do “Lady Gaga e suas Influências”, será explorada a voz que Lady Gaga dá às minorias, a conversão de seu talento em representação e às causas sociais. Afinal, todos os artistas da música que se se posicionam politicamente e engajam-se em uma luta social tem Nina Simone como um grandioso exemplo, a maior cantora de blues e soul de todos os tempos.

Uma das mais influentes artistas do século XX, Nina Simone é eclética, destemida e a voz de uma geração. Em 2018, foi introduzida ao Hall da Fama do Rock’n Roll e, dois dias antes de sua morte, Simone soube que receberia um prêmio honorário do Curtis Institute of Music, a escola de música que se recusou a admiti-la como aluna no início de sua carreira.

Simone recebeu 15 indicações ao Grammy em toda sua carreira, duas durante sua vida e duas postumamente. A primeira delas foi em 1968, na categoria Melhor Performance Vocal Feminina de R&B pela faixa "(You) Go to Hell" de seu décimo terceiro álbum “Silk & Soul” (1967). A sua última indicação foi em 2018, em Melhor Canção de Rap como compositora por "The Story of O.J.", de Jay Z, que continha um sample da canção "Four Women". Em 2000, recebeu o prêmio Grammy Hall of Fame. A artista faleceu dia 21 de julho de 2003, aos 70 anos, vítima de câncer.

“[Nina Simone] foi uma musicista pioneira cuja carreira foi caracterizada por acessos de indignação e gênio improvisado.” - Rickey Vincent

Em 2019, a canção "Mississippi Goddam", grande hino ativista da causa negra, foi selecionado pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos para preservação no Registro Nacional de Gravações por ser "cultural, histórica ou esteticamente significativo". Além disso, foi uma das primeiras artistas negras a ingressar na renomada Escola de Música de Juilliard, em Nova Iorque, graças à uma ação de arrecadação de dinheiro por parte da primeira professora de piano clássico de Simone.

O repertório de Nina Simone é extremamente diverso, tendo sucessos escritos pela mesma, covers que fizeram canções desconhecidas se tornarem sucessos e músicas escritas por outros diretamente para ela. Seu primeiro hit nos Estados Unidos foi a canção “I Loves You, Porgy”, que alcançou #18 na Billboard Hot 100.

Assim como Lady Gaga, Nina Simone aprendeu cedo a arte do piano. Simone começou a tocar o instrumento entre três a quatro anos de idade, oriunda de uma família pobre da Carolina do Norte. Muito talentosa, tocava piano na igreja que frequentava, tendo seu primeiro concerto aos 12 anos de idade.

Uma situação ocorrida nessa ocasião foi um dos marcos que contribuíram para seu envolvimento posterior no movimento pelos direitos civis. Durante sua primeira apresentação, seus pais, que haviam se sentado na primeira fila, foram forçados a se deslocar para o fundo do salão para dar lugar a brancos. Nina Simone se recusou a tocar até que seus pais fossem transferidos de volta para a frente. Antes de começar definitivamente a trabalhar com música, a artista tentou conseguir algum auxílio em uma das mais renomadas escolas de música do país.

Candidatei-me então a uma bolsa de estudos no Instituto Curtis de Música, Filadélfia. [...] Eu sabia que era boa o bastante, mas fui recusada, e levei uns seis meses para ver que era por eu ser negra. Nunca superei aquele golpe baixo racista na época”. - Nina Simone

Nina permaneceu algum tempo em Nova Iorque até ir para Atlantic City, começando a trabalhar como pianista em um bar. Depois de um tempo já ambientada com o trabalho, começou a ceder aos pedidos do dono do estabelecimento que a pedia para cantar enquanto estava ao piano. Diferentemente de Lady Gaga, que realmente começou a se apresentar em bares com o sonho de se tornar uma grande estrela, Nina Simone tocava em bares para sustentar sua família e ter dinheiro para continuar a estudar piano clássico.

Quando eu entrei no show business, eu não era cantora de blues nem cantora de jazz. Eu era pianista clássica. Estudei para ser a primeira pianista clássica negra dos Estados Unidos, e era só nisso que eu pensava”. - Nina Simone

Musicalmente, seu principal aspecto era a originalidade e constância. Afinal, ninguém soa como Nina Simone senão Nina Simone. Era dona de uma voz ímpar, cheia de profundidade e escuridão. Abordava temas que iam de amor e paixão a até autoaceitação, amor próprio e liberdade.

Sua grande contribuição para o mundo da música foi, dentre várias, trazer a espontaneidade e improvisação do jazz para a música clássica. Em paralelo, sendo Lady Gaga uma grande fã de música jazz, a Mother Monster conseguiu transformar grandes clássicos desse gênero musical em canções atuais e reinterpretadas no seu álbum de estúdio “Cheek to Cheek", ao lado de Tony Bennett. Enquanto que Lady Gaga tem suas origens no jazz e no rock da segunda metade do século XX, mas faz majoritariamente música pop, Nina Simone tem suas origens na música clássica de Bach, Beethoven e outros artistas clássicos, mas fez sucesso no jazz e música soul.

O que me interessava era transmitir uma mensagem emotiva, o que significa usar tudo que se tem dentro de si para, às vezes, mal e mal tocar uma nota ou, se tiver força para cantar, você canta”. - Nina Simone

Lady Gaga, quando ao piano, exala a sofisticação, potência e profundidade tal qual Nina Simone, o verdadeiro significado de uma artista temperamental, impositiva e com personalidade.

Um dos sucessos do seu primeiro álbum de estúdio, “Little Girl Blue” (1958), foi a canção “My Baby Just Cares For Me”, puramente jazz.

Nina Simone, inclusive, já gravou diversos clássicos os quais estão presentes na álbum de Lady Gaga e Tony Bennett. Além disso, Lady Gaga já gravou o sucesso de Simone “Don’t Let Me Be Misunderstood”, de 1965, em uma participação no álbum de seu amigo e colaborador Brian Newman, “Showboat” (2018).

Por conta de sua presença e porte no palco, Nina Simone é conhecida como a “Alta Sacerdotisa do Soul”. A artista incorporava monólogos e diálogos com o público em suas apresentações, muitas vezes usando o silêncio como um elemento musical.

Nina possuía a habilidade de tocar no piano contrapontos em três partes (suas duas mãos no piano e sua voz cada uma tocando uma linha melódica separada, mas complementar). Muitas vezes era vista como uma artista às vezes imprevisível, ocasionalmente intimidando o público se achasse que eles eram desrespeitosos.

"[Nina Simone] não aderiu a tendências passageiras, não é uma relíquia de uma era passada; sua entrega vocal e habilidades técnicas como pianista ainda deslumbram e suas performances emocionais têm um impacto visceral." - The Wall Street Journal

Entretanto, mais do que uma gigante na música, Nina Simone foi uma personagem fundamental no contexto de representação negra na música e na sociedade durante toda sua vida, em particular ao longo das décadas de 1950 e 1960 nos Estados Unidos.

O período foi marcado no país por uma grande movimentação social contra o racismo, a segregação racial e pela luta por direitos civis. Se a luta política estadunidense teve Martin Luther King como seu principal expoente, Nina Simone foi a figura de maior destaque na música. A artista, inclusive, devido ao seu envolvimento com a luta social da década de 1960, cantou no enterro do líder político.

Não só a música cobria as necessidades de Nina Simone. A mesma queria justiça para o povo negro em um contexto de diversos atentados à igrejas, bares, residncias e locais próprios da comunidade no país.

Após a morte de diversas crianças negras em um atentado em uma igreja cristã, no Alabama, Nina Simone compôs sua primeira entre várias canções com cunho político, a potente “Mississipi Goddam”. Voraz, a canção trata sobre insatisfação e vontade de mudanças. A cantora tornou real aquilo de todos os negros do período gostariam de falar em alto e bom tom: “Alabama me perturbou tanto, Tennesse me fez perder o sossego, e todos sabem do Mississipi, put* que o pariu!”.

Na época, a canção foi revolucionária. Afinal, além de não se tocar músicas com palavrões nas rádios, a música foi a primeira vinda de um artista de grande porte e sucesso a retratar a condição dos negros dos Estados Unidos no período. Como transmite a canção de Simone “I Wish I Know How It Would Feel to Be Free”, liberdade é não sentir medo.

Nina Simone embarcou junto à população negra da década de 1960 no desafio de suas vozes serem ouvidas. Com a intensificação do movimento por direitos civis, Nina Simone o seguiu. Ao longo da década, sempre discursava em seus shows apoiando a luta por direitos civis da população negra, além de comparecer em diversos concertos em passeatas e marchas pelo país.

Esse quesito foi uma grande fonte de conflitos entre Nina e seu empresário e marido, já que, enquanto este preferia focar no quesito comercial, Nina Simone queria manter-se nas atividades dos direitos civis. A artista via necessidade de se impor enquanto artista, de fazer parte e somar forças em um momento tão crucial na formação de seu país.

Quando surgiu o lance de direitos civis, de repente, eu podia me permitir ser ouvida sobre o que sentia o tempo todo”. - Nina Simone

Em 2020, Lady Gaga fez parte dessa história contra o racismo e injúria racial nos Estados Unidos - que infelizmente ainda não chegou ao fim. Tendo como estopim a morte injusta e covarde de um homem negro, chamado George Floyd, o início do ano viu multidões ocuparem as ruas do país e ainda presencia diversos movimentos populares que reivindicam justiça social e policial.

Como Nina Simone, Lady Gaga já deixou claro que alguém dentro ou ou fora da comunidade negra e com seu alcance e visibilidade é peça-chave para se dar voz e provocar reflexões perante causas sociais dentro de um país e uma sociedade globalizada na qual estamos inseridos. Tendo se pronunciado no início das manifestações em 2020, Lady Gaga foi uma das artistas apoiadoras da causa “Vidas Negras Importam”, que viralizou nas redes e as perpassou com a sigla em inglês “Black Lives Matters”. O Black Lives Matter é um movimento ativista internacional, com origem na comunidade afro-americana, que luta contra a violência direcionada às pessoas negras.

Rezo pela comunidade negra que sofre com o medo do preconceito, da violência e da injustiça. Precisamos de legalidade, justiça, unidade. #BlackLivesMatters

A cantora publicou uma carta aberta por meio de suas redes sociais e, durante um mês, disponibilizou sua conta na rede social Instagram para a promoção de organizações voltadas à resistência e causa racial dos Estados Unidos.

Nós DEVEMOS mostrar o nosso amor pela comunidade negra. Como uma mulher branca, e privilegiada, eu faço um juramento que irei exercer isso. Nós, como uma comunidade privilegiada, não temos feito o suficiente na luta contra o racismo e pelas pessoas que estão sendo mortas por ele”. - Lady Gaga, em carta aberta.

A cantora, entretanto, é frequentemente relacionada à comunidade LGBTQIA+. Afinal, seus discursos, sua promoção e sua voz enquanto artista é marcada pela defesa da comunidade. Não é à toa que diversos de seus sucessos são grandes hinos LGBT.

Nina Simone, sendo uma artista negra, tendo vivido uma fase tensa para a conquista dos direitos civis nos Estados Unidos e sido uma voz importante para o movimento, possui várias canções em seu repertório marcadas pela identidade e empoderamento negro que serviram de combustível para a luta social, autovalorização e autoconhecimento da população negra até os dias de hoje. Além de “Mississipi Goddam”, há os sucessos “Work Song”, “To Be Young, Gifted and Black”, “Why? (The King of Love is Dead)”, “Blacklash Blues” e “Ain’t Got No - I Got Life”. Muitas dessas canções, inclusive, foram regravadas por artistas negros em 2020.

A consciência de Simone sobre o discurso racial e social foi motivada, além de sua própria vivência e realidade enquanto mulher negra, por sua amizade com intelectuais negros e negras que, além de tornarem seu discurso mais politicamente embasado, auxiliaram na composição de diversas músicas

Contudo, uma voz da população negra, Nina Simone não se limitou ao movimento dos direitos civis. A artista também usou de sua música para o empoderamento feminino negro. Sua canção "Four Women" expõe os padrões eurocêntricos de aparência impostos às mulheres negras na América. Em sua autobiografia, “I Put a Spell on You”, Nina Simone explica que o propósito da canção é o de inspirar as mulheres negras a definirem sua beleza e identidades sem a influência de imposições sociais.

Lady Gaga e Nina Simone são figuras necessárias não só no quesito musical, mas em como a música pode se transformar em voz e representação. Seja Lady Gaga para com a comunidade LGBTQIA+ ou tendo sido Nina Simone para com a comunidade negra mundial, ambas transformaram sua voz em impacto e em encorajamento. Além do sucesso, Gaga e Simone acharam no palco um propósito: ser a voz de um coletivo.

PLAYLIST - LADY GAGA E SUAS INFLUÊNCIAS

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