Na noite desta sexta-feira, Lady Gaga fez história no festival Coachella, na Califórnia, com seu show.

O espetáculo, intitulado The Art of Personal Chaos, é uma celebração de seu novo álbum, "MAYHEM", que evoca e trabalha com temas como a aceitação dos monstros internos como parte essencial da individualidade e, por se tratar de Lady Gaga, a relação dessa monstruosidade com a arte.

A artista criou um cenário de ópera e dividiu seu espetáculo em quatro atos e um final, em clara referência à estrutura da ópera, que consiste numa performance que alia atuação à música e figurinos exuberantes.

Abaixo, você pode conferir algumas curiosidades sobre o evento planejado pela Mother Monster.

A ÓPERA

A ópera é uma forma de arte que une música, teatro, poesia e cenografia para contar uma história. Tradicionalmente, é quase totalmente cantada, acompanhada de uma orquestra, às vezes intercalada com pequenas falas.

A divisão deste gênero musical consiste em algumas partes essenciais:

Abertura
Atos
Arias
Coros

No "MAYHEM In The Desert", nome alternativo para o show de Lady Gaga no Coachella, a cantora estruturou a apresentação em 5 partes: quatro atos e um final, seguindo uma narrativa semelhante à de uma ópera.

A Abertura, que serve como uma introdução à obra e costuma apresentar os temas musicais que serão desenvolvidos ao longo da ópera, no The Art of Personal Chaos, consistiu na apresentação do Manifesto Of MAYHEM

Este é o Manifesto do Caos. A Senhora se ergue diante de mim, olhos arregalados e cheios de fúria, sua bengala na mão direita, no pé esquerdo, um gesso. "Cuidado" — ela diz — "O caos no seu coração jamais cessará, até que você encontre outra maneira de canalizar o que procura." Seu tom assombroso, sua fala inquieta, a música da sua boca, suas unhas arranhando e sua vida interior são como uma tempestade. Em um instante, em toda a sua glória, então, começamos a dançar. Minha mão recua, meu peito explode, minha mão começa a travar. Não conhecer a paz é o grande pesadelo de todos nós — despertar e sentir-se inquieto numa casa sem paredes. Então eu devo cantar e construir as paredes para embalar meu próprio espaço, e meu próprio som fará crescer a fortaleza de um lar apagado. E ela e eu encontraremos uma maneira de viver como gêmeas em duelo. Mas saberei, no fim, se a Senhora do Caos venceu.

É possível perceber que Lady Gaga aborda os temas que vem desenvolvendo em seu álbum mais recente, como o caos e a dualidade dos elementos da vida.

Nesse momento, o telão exibe duas versões da Lady in Red, personagens interpretadas por Lady Gaga ao longo da apresentação: a Senhora do Caos e uma figura angelical da própria cantora. Ambas representam, de forma simbólica, o conflito interior entre luz e escuridão.

Após o manifesto, a orquestra toca e é apresentado ao público a estrutura que a ópera de Lady Gaga seguirá, composta em atos, que também estruturam a setlist:

ATO I – DE VELUDO E VÍCIO
ATO II – E ELA CAIU EM UM SONHO GÓTICO
ATO III – O BELO PESADELO QUE SABE O NOME DELA
ATO IV – DESPERTÁ-LA É PERDÊ-LA
FINALE: ÁRIA ETERNA DO CORAÇÃO MONSTRO

Todos os atos são introduzidos por apresentações de orquestras bastante dramáticas.

Uma curiosidade é que, na faixa "Abracadabra", a ponte da música em que se canta "Phantom of the dance floor, come to me / Sing for me a sinful melody" pode ser considerada uma alusão ao conhecido Fantasma da Ópera.

Também, o cenário que inspirou o palco do The Art of Personal Chaos, a Ópera Garnier, em Paris, foi o local que serviu de cenário para o romance de Gaston Leroux, “O Fantasma da Ópera”, publicado em 1910.

Na abertura do ATO III, o DJ Gesaffelstein assume o papel de fantasma da pista de dança, como cantado na ponte de "Abracadabra":

É interessante observar que ele está usando uma máscara, possível referência à ópera acima mencionada.

Abaixo, você pode conferir uma apresentação musical de "O Fantasma da Ópera":

O ato final de uma ópera é o ponto máximo da emoção e o encerramento da história. É o momento em que os conflitos se resolvem, revelações acontecem e decisões importantes são tomadas. Costuma incluir cenas intensas e emocionantes, com árias marcantes, podendo haver mortes, reconciliações, vinganças ou redenções — sempre com muita carga emocional.

Nesse final, a Senhora do Caos (SC) e Lady Gaga (LG) conversam sobre a dualidade entre as duas personas e concluem que ambas são monstros, indicando a reconciliação entre elas.

Ambas: Quem é você?
SC: Você sabe quem você é?
LG: Eu não sei quem eu sou.
SC: Quem sou eu?
LG: Eu sou eu.
SC: Não, não é.
LG: Eu sou forte.
SC: Você é fraca!
LG: E sou tudo.
SC: Você não é nada!
LG: Que diferença faz? O mundo me ama.
SC: O mundo te odeia!
LG: Eles me enxergam.
SC: Eles não te entendem.
LG: Eu sou um monstro.
SC: Sim, você é um monstro.
Ambas:Nós somos monstros, e monstros, nunca morrem.

AS PERSONAS

O Manifesto of MAYHEM explicita a dualidade entre duas figuras importantes: a Senhora do Caos e Lady Gaga, uma figura mais angelical.

A dualidade dessas formas de ser é representada pelas cores e roupas utilizadas, em que a escuridão do vermelho de uma contrasta com a claridade da outra.

Esta dualidade é trabalhada ao longo de todo o show. Já no ATO I, é possível perceber a forte presença da cor escura nas roupas da cantora.

Também, durante a performance da faixa "Poker Face", o duelo que se estabelece entre as duas personas de Gaga, onde uma disputa com a outra num tabuleiro de xadrez, indicando que uma personalidade joga com a outra.

Esse momento faz referência a dois grandes marcos do mundo da arte: 1. à história de "Alice no País das Maravilhas", em que a personagem Alice precisa atravessar o tabuleiro de xadrez (vencer o jogo) para se tornar rainha, onde o tabuleiro funciona como uma espécie de metáfora para o crescimento e amadurecimento da protagonista, que começa como uma peça "fraca" e termina com poder e autonomia.

Ao final do duelo, após a batalha épica promovida pelo lema "Dance ou morra", uma das personas de Lady Gaga grita para a outra, já derrotada: "Cortem-lhe a cabeça", referência à obra de Lewis Carroll acima mencionada.

Este momento do show também faz referência ao desfile de Alexander McQueen de 2005, intitulado "It’s Only a Game". Neste, McQueen transformou a passarela em um tabuleiro de xadrez gigante, onde as modelos representavam peças vivas em uma partida simbólica entre o Ocidente e o Oriente.

Ao longo de uma ópera, as personagens (ou personas) são essenciais para dar vida à narrativa musical e teatral. Elas têm um papel central em comunicar as emoções, conflitos e temas da obra. Elas são a história em forma viva e cantada.

Já no Ato II, Lady Gaga se apresenta em sua persona que transmite luz e claridade, em oposição à do primeiro ato.

Ao longo dos atos II até o final do III, a persona angelical de Lady Gaga vai ganhando contornos mais sombrios, metaforizados pelas roupas e acessórios, e pelo esqueleto com o qual dança durante a faixa "Zombieboy", e pelas caveiras anexadas ao piano para cantar "Die With a Smile", simbolizando elementos da morte.

No início do ATO IV, a Senhora do Caos, a Mistress Mayhem, assume o centro do palco:

Este duelo de personas tem seu clímax no final do show, quando Lady Gaga canta "Bad Romance".

A roupa, que remete à claridade, é extravagante e com traços do absurdo, simbolizando a união do caos - porque uma não pode viver sem a outra:

Gaga utilizou uma roupa produzida pela dupla Fecal Matter, que declararam sobre a peça:

"Sempre fomos obcecados por anjos. Quando você anda pela rua e sente que sua vida corre perigo todos os dias só por ser quem você é, precisa encontrar esperança em outro lugar. Perdemos muitos amigos ao longo de nossa jornada de 10 anos — seja para drogas, suicídio ou outras lutas. Nossa comunidade é pequena e muitos não têm os recursos adequados para apoio à saúde mental ou parceiros que nos apoiem. Então, perdemos pessoas que amamos e, de certa forma, as vemos como anjos da guarda"

Ao titular a parte final de FINALE: ÁRIA ETERNA DO CORAÇÃO MONSTRO, Gaga faz referência ao elemento ária, muito característico de uma ópera. Trata-se de uma apresentação solo cantada por um personagem, usada para expressar emoções profundas, pensamentos íntimos ou um momento de reflexão pessoal dentro da narrativa. É um dos momentos mais destacados de uma ópera.

Com isso, ela percebe que não adianta tentar escapar da MAYHEM, do Caos, porque isso faz parte dela. Os monstros internos habitam dentro de si, e cabe a ela aceitá-los, aprender a conviver e a lidar com eles. Com essa aceitação, ela e o Caos acabam se unindo, tornando-se um só.

OS TEMAS

Há alguns anos, Lady Gaga vem dando indícios da estética que viria a trabalhar em seu novo projeto, o álbum "MAYHEM", lançado no dia 7 de março de 2025.

Em suas últimas entrevistas para promover o disco, a cantora enfatiza que a ideia de seu novo trabalho é a luta pelo controle e aceitação do caos interior e, com isso, a dualidade entre anjos e demônios, claro e escuro — como vem sendo destacado por meio de seus trabalhos visuais, como para os videoclipes das faixas "Disease", "Abracadabra" e pela letra do smash hit "Die With a Smile".

Desde 2012, por exemplo, os photoshoots da artista já indicavam essa estética dual entre claro e escuro:

Até que em maio de 2024, Lady Gaga divuilga o ensaio fotográfico promocional para o GAGA CHROMATICA BALL, fortalecendo a ideia do caso e da dualidade.

E é justamente a esse tema que remete e guia toda a ópera do The Art of Personal Chaos, que desde a Abertura, já anunciava:

"O caos no seu coração jamais cessará, até que você encontre outra maneira de canalizar o que procura."

E ela [Senhora do Caos] e eu encontraremos uma maneira de viver como gêmeas em duelo. Mas saberei, no fim, se a Senhora do Caos venceu.

Por isso, ao longo do espetáculo produzido e dirgido por Lady Gaga no Coachella, são constantes a luta entre a Senhora do Caos e a própria Lady Gaga, até que uma vença a outra ou aprendam a conviver.

Frederic Aspiras usou seu Instagram para falar um pouco mais sobre os cabelos usados por Lady Gaga durante seu show no Coachella e reforçou a dualidade, artisticamente desenhada por ele:

Quis que os cabelos representassem a dualidade — a tensão e a harmonia entre a escuridão e a luz. Criamos visuais que contassem essa história: um enraizado na estrutura gótica, com linhas arquitetônicas marcantes, textura fosca e tons intensos de preto profundo. O outro, um contraste em suavidade — tingido à mão em camadas de pérola e prata, com fibras etéreas que se moviam como líquido sob as luzes do palco. Isso foi mais do que cabelo — foi narrativa visual, moldada pelo contraste e criada com intenção.

OS FIGURINOS EXUBERANTES

As óperas geralmente abordam temas intensos e emocionantes — como o amor, a traição, a vingança, o poder e a morte. Os figurinos ricos em detalhes contribuem para intensificar essas emoções no palco, compondo uma estética que reforça o clima dramático das narrativas.

Em The Art of Personal Chaos, a celebração do álbum "MAYHEM" enfatiza a busca pela aceitação e pelo controle do caos interior. Em diversas entrevistas, Lady Gaga tem ressaltado essa ideia.

Foi lindo. Foi divertido. Foi sério. Eu fico muito séria quando trabalho. Algumas músicas são raivosas. Há momentos de humor e confiança. Também fala sobre o caos de ser mulher – sentir tudo intensamente e passar por tudo.

Quero que todos sorriam através do caos.

Coisas que costumavam me assustar agora são realmente emocionantes.

"Quando isso [a aceitação da adversidade] invade sua vida, pode ser difícil controlar. Faz parte do caos

'Mayhem' é sobre seguir o seu próprio caos, seja para onde ele te levar na sua vida. E, dessa forma, foi sobre seguir as músicas. Escrever tantas músicas como escrevi para este álbum foi um trabalho de puro amor. E então, no final, você tem que ser muito implacável.

Com isso, os figurinos são importantes para a construção da narrativa numa ópera, porque ajudam a visualmente amplificar essas emoções, criando uma estética que combina com o dramatismo das histórias.

Na ópera La Traviata, de Giuseppe Verdi, por exemplo, a exuberância e luxuosidade das roupas podem representar a superficialidade da sociedade que oprime a protagonista.

No "MAYHEM In The Desert", Lady Gaga explora ao máximo o uso das roupas para expressar emoções e dramaticidade.

Ao longo da narrativa de The Art of Personal Chaos, os figurinos evidenciam o controle do caos. No início da apresentação, os trajes são exuberantes, excêntricos e dramáticos, acentuando a presença do caos na vida:

À medida que a performance avança, esses mesmos elementos visuais vão se tornando mais contidos, sinalizando uma mudança de perspectiva na relação com o caos. É o caso, por exemplo, do clipe de "Abracadabra":

Quando a personalidade mais obscura emerge no Ato V, a partir da performance de "Shadow of a Man", ela já aparece com um visual sóbrio, indicando um certo controle ou assimilação desse lado caótico.

Tudo culmina no final, quando o caos — simbolizado pelo exuberante — se une à luz. Essa fusão representa o momento em que Gaga compreende e aceita o caos como parte de si, o que enfatiza o diálogo final entre a Senhora do Caos e Lady Gaga.

UMA CELEBRAÇÃO DA CARREIRA

O "MAYHEM In The Desert" foi repleto de referências à carreira de Lady Gaga e ao seu amor pela moda, uma vez que a cantora sempre buscou unir estes elementos para criar e expressar sua arte.

A artista fez uma referência a si própria no clipe de "Bad Romance":

Gaga também fez referências ao clipe de "Paparazzi" e a um desfile de 2003 de Alexander McQueen.

Vê-se também uma alusão ao sangue da performance do VMA em 2009 durante a apresentação final de "Bad Romance" no Coachella:

No final da performance de "Disease", Gaga enfrenta outra dualidade com sua persona do passado:

Em uma celebração do caos, Lady Gaga novamente entregou um grande espetáculo digno dela e fez história num dos maiores festivais de música do mundo, se consolidando como uma das maiores headliners do evento e recebendo da mídia internacional o título de cantora pop incomparável.